quarta-feira, fevereiro 27, 2013

4º Capítulo do livro Pintores e Poetas de Rilhafolhes de Júlio Dantas

I. — A. G., 3o anos. Pintor decorador. Euricefalo. Índice cefálico : 78,2 (15,8— 20.2). Orelhas de lóbulo aderente ; disposição anómala das raízes da crura furcata (tipo Stahl). Pupilas iguais, mioticas, não se movendo á acomodação e movendo-se á luz. Convulsões fibrilares ligeiras nos lábios e massetéres. Tremor episódico das extremidades. Embaraço da palavra. Nível intelectual bastante descido. Insuficiência ética e estética. Amnésia. Preso várias vezes por atentados públicos ao pudor. Entrada para Rilhafoles em 1894.
Diagnostico: demência paralítica — Curso de artes decorativas em Paris. Trazia os quadros debaixo do braço, mostrava-os a quem quer que fosse, e pedia, á queima roupa, dez tostões emprestados. Era a fórmula clássica do encosto. Agarrava-se na rua, violentamente, ás mulheres, forçando-as a acompanhá-lo. Hiperestesia sexual expressa nos próprios motivos picturais. Mais tarde, floração de um delírio de grandezas de colorido inventório, perfeitamente documentado num folheto de sua lavra que consegui obter e no gráfico de um dos seus inventos, o «motor eléctrico de vácuo», que existe na collecção de Rilhafoles. O folheto intitula-se : As mulheres desmascaradas, estudo do natural por A G., o qual demonstra que o espirito tem uma mecânica especial á qual obedece e de que o corpo é o mais fiel interprete. A sua publicação data de 1886. É um apontoado de incoerências, em que o doente, do alto duma charra erudição que sôa a prata falsa, se arroga, como grande filósofo, a descoberta de certo instínto magnético psicológico das fêmeas, a qual constitue, escreve o autor, uma das maiores descobertas d'este século (pág.18). A história deste folheto está, de resto, ligada a um desastre conjugal. — Mas o que especialmente nos interessa, no doente, é a parte pictural da documentação. A. G., que era, segundo informações colhidas, um medíocre pintor decorador, quasi improdutivo, desentranhou-se, com os pródromos da périencefalite, num nunca acabar de figuras decorativas, de motivos ornamentais, de projetos de fontes e piscinas, tudo dado em belos gouaches, cujas principais características são a riqueza poética, o colorido sensual da criação, a exuberância imaginativa, a feição sempre nova e sempre imprevista dos motivos. O inicio da cerebropatia é, muitas vezes, a idade d'oiro do paralítíco artista, — o que se não deve estranhar dada, no período de excitação da paralísia, a maior intensidade na reprodução das representações e, por conseguinte, o acréscimo de força imaginativa. Mas, observando mais cuidadosamente os documentos do doente, não tardamos em descobrir a nota vesânica a par desse falso brilho e dessa notável riqueza poética. De feito, o instinto da academia perde-se ; as proporções desaparecem : a figura humana  toma um ar caricatural. O motivo decorativo torna-se grotesco, barroco, quase monstruoso por fragmentos, conservando-se rico mas relativamente puro no resto da obra : daí o desequilíbrio que logo á primeira vista fere o observador. O documento ganha em riqueza imaginativa o que perde em valor estético absoluto. Outro facto que desde logo impressiona na observação superficial é a insistência do doente sobre os mesmos motivos : trechos de fontes ornamentais, nús míticos, figuras semicápras, brutescos, mascaróes, gárgulas. Esta insistência parece-me  própria de todo o vesanico. — Ultimamente, o nosso paralítico já nada produz. Grande indiferença. Inteira derrocada dos sentimentos estéticos. Lapsus memoriae : de alguns gouaches que lhe mostro já não se lembra de que foi elle o autor.
 Uma  Gouache» do paralytico geral A. G. (Obs I)
Retrato do epiléptico P. R. feito pelo paralytico geral A. G.
II. — J. M., 35 anos. Pintor decorador. Temperamento nervoso. Constituição forte. índice cefálico 74,4(14,8—10.9). Orelhas de lóbulo aderente. Grande desigualdade da face : lado esquerdo muito mais volumoso do que o direito. Grande reentrância nasofrontal — A entrada para Rilhafoles, esboço de ideias de perseguição, preocupações hipocondriacas : está podre por dentro, etc. Confissão de hábitos alcoólicos e de excessos masturbatórios. Ideias de suicídio. Tentativa de precipitação de lugar elevado (Janeiro, 1900); tinha na algibeira um papel onde se lia «aqueles que eu supus serem-me caros foram os meus traidores. Resignem-se agora."
Diagnostico: loucura alcoólica.- Não consegui obter os antecedentes artísticos do doente. Os documentos que deixou, largos estudos a pastel, são, apesar duma certa dureza, excelentemente executados. Sente-se ali o artista, o profissional. A maior parte dos pastéis está inacabada. Pela sua natureza especial pouco interessam ao psiquiatra. São paisagens e marinhas, realizadas com um inteiro conhecimento da técnica, duma feitura paciente, e onde a custo se enxerga a nota vesânica. Um deles, de execução manicomial, já é mais eloquente: uma grande àrvore nua, tronco torso e rugoso, esbracejando num céu doirado de sol e prenhe de pastadas roxas. Semelhante estudo, evidentemente feito de cor, traz uma manifesta monstruosidade. A imaginação que produziu esse tronco brutal, esbrazeado e torcido, é bem a imaginação dum louco. — Ao cabo dum período de improdução, o doente sai, no mesmo estado.
III. — F. A. d'A., 28 annos. Cocheiro. índice cefálico 78,0 (14,9—9,i)- Platicefalo. Lóbulos da orelha
aderentes; helix desdobrada. Nariz inclinado,de bordo irregular : perfil seguindo o da fronte, sem reentrância. Abóbada palatina ogival. Osso transversal do crâneo fortemente convergente, de maneira que a parte superior faz um ângulo, pouco mais de recto, com os ramos laterais. — Reservado, evidentemente dissimulador. Alucinações do ouvido. Esboço de idéas persecutórias em período de pré-sistematização. Supostas perseguições, lá fora, levando-o a agressões. Condenado a quatro meses de Limoeiro por ferimentos. Em Rilhafoles teve uma balanopostite que supoz venéreo inoculado por um criado: daí, agressão. —

Diagnostico : paranóia primitiva com delírio de perseguições. — Foi só depois de internado em Rilhafoles que se manifestaram as tendências artísticas do doente. Essa floração, devida por certo á intimidade do epiléptico P.R., seu mestre (obs. IV) começou bruscamente por umas largas composições de carácter religioso, sobre tudo figuras de santos e cenas do Novo Testamento. Entre as mais interessantes aparecem-nos um S. Pedro Romano, uma Ceia apostólica, um S. Lucas e um S. Joaquim. Pela primitividade das atitudes e das perspectivas, pela índole mística dos motivos, pelo excessivo culto das roupas, sempre exaradas e sempre anacrónicas, pelo ar convencional e velhorro dos movimentos e dos gestos, pelo carácter geral da composição, enfim, as pinturas do nosso paranóico sugerem, ainda que Ionginquamente, alguns góticos piores das Janelas Verdes. A semelhança chega a ser ás vezes tão flagrante, que essas figuras de santo, apesar de inegavelmente originais, parecem á primeira vista copias dos «primitivos». Tanto mais essa
ideia nos acode, quanto é certo que há nas tentativas do doente um forte instinto da composição, da côr e da atitude, verdadeiramente extraordinário tratando-se dum louco sem anterior cultivo. O carácter de primitividade não vem, por conseguinte, do tosco das figurações; mesmo porque, nesse caso, todas as figuras criadas pelo louco não artista nos lembrariam a primitividade dos góticos. Há. necessariamente, mais alguma coisa nas pinturas do paranóico que nos ocupa, e essa alguma coisa poderia, se quiséssemos teorizar, lançar-se á conta da própria paranóia, como expressão dum forte anacronismo. Outra coisa a notar é a independência pouco vulgar entre as tentativas picturais do doente e o conteúdo das suas ideias delirantes, facto talvez devido ao estado de pré-sistematização dessas ideias. — Uma nota curiosa: os documentos do nosso «primitivo» teem, todos eles, assinaturas e ofertórios charros do epiléptico P. R., grafómano e borrador incorrigível, que deles dispõe a bom talante, como feitura sua. Dai, a natural confusão que á primeira vista pode existir entre a documentação dum e doutro.
 A Ceia apostólica composição do paranóico F. A. d'A. (Obs III)
 S. Pedro Romano, composição do paranóico F. A. d'A. (Obs. III)
IV. — J. P. R, 40 anos. Professor de instrução primária em Montemór-o- Velho. Acrocéfalo. Vesgo do olho direito. Formidável avanço do maxilar inferior. Extracto dos documentos de admissão: monomania incendiária, obscenidades, agressão. Pretende uma cadeira para reger. Estado demencial. Ataques epilépticos frequentes: o carácter muda então, de todo em todo; torna-se silencioso, desconfiado, irritável; o rosto apresenta-se túrgido. Luxação do maxilar inferior, por duas vezes reduções difíceis.
Diagnóstico: loucura epiléptica. — Grande soma de documentos, ao mesmo tempo picturais e escritos. Em todos eles. a expressão dum profundo estado crepuscular. Feitio hipócrita; geitos de tartufo; mímica grotesca. Motivos documentais quasi sempre religiosos : altares com sacrários, tocheiros e cruzes, conseguidos pela abusiva colagem de papel doirado ; ás margens, figuras estupendas, mulheres esmamaçadas, verónicas, vasos de oiro, animais fabulosos, e no verso, escrito em latim lazerado, o Tantum ergo. Uma das suas composições mais interessantes é o Dia de Natal: a Virgem, de uberes á mostra, um jumento evangélico, ao alto uma grande máscara de papel doirado figurando o sol, e nos baixos, em chão verde, três pastores de cabras com estes dizeres : « Vamos vêr o menino de S. José e Nossa Senhora, ho rapaseko ! Sim, que é Jesus, filho de Nosso pai Eterno? A Belém e mostremos-lhe o gado.» Este documento dá bem a medida do estado crepuscular do doente. Escusado dizer que,pelo lado pictural, como execução, o valor é nulo. Observação curiosa: todas as cabeças humanas que o doente figura, todas as suas verónicas, são volumosas na face e acanhadas no crâneo, parecendo, dum modo canhestro, é claro, reproduzir-lhe a estigmatização somática. Mas a principal obra deste curioso epiléptico é uma brochura manuscrita, iluminada pelo próprio doente, e que dá pelo nome de «Método das Principais Artes Universais». É, como o titulo indica, um tratado das várias artes e ofícios, começando pelos trabalhos da lavoura e terminando pela «arte barbeiral». O doente, como já dissemos, pretende uma cadeira para reger e quer que esta e outras obras de sua lavra sejam adoptadas nas escolas. De vez em quando escreve ao rei de Itália pedindo a adopção dos seus livros nas escolas primarias italianas —Ultimamente
tem insistido nos motivos litúrgicos, na figuração de objectos do culto externo, com as mesmas abusivas colagens de papel doirado, pejando largos cartões que envia depois, em ofertórios cheios de diminutivos melosos, «ao seu amado Director que o curou dos acidentezinhos epilépticos (sic).»
V. — C. A. das N.. 20 anos. Asilado. índice cefálico 76,0 (14,6—19,2). Fronte fugidia. Abóbada palatina funda. Por várias vezes, a fulguração sagrada, Agressões aos empregados. Tentativas de evasão.
Diagnóstico: loucura epiléptica —Documentação pictural unicamente curiosa pela insistência nos mesmos motivos — figuras aladas, objectos domésticos vulgares, animais repugnantes — e pela impropriedade na distribuição da côr, dando em resultado uma perfeita cacocromia : bois verdes, osgas vermelhas... De quando em quando, figurações simbólicas incompreensíveis, que o doente se nega a explicar. Estado demencial.
VI. — J, A., (o caldeireiro), 22 anos. Acrocefalo. Índice cefálico 77,0  (13,7 — 17,8).Crâneo ogival. Fronte estreita. Pelada. Paludismo: splenomegalie. Gagueira. Mãe alienada. Fulguração não observada  mas acusada pelo doente. Nível intelectual baixo.  Feitio epiléptico: "vossa excelentíssima, vossa reverendíssima..." Reclusão penitenciaria.
Diagnóstico: loucura epiléptica. - Documentos curiosíssimos. Versos escritos à feição de prosa, numa ortografia detestável porque o doente é um inculto, palavras separadas por pontos, abuso de maiúsculas. Reduzindo alguns desses manuscritos a uma forma legível enxergam-se alguns conceitos poéticos que vale a pena transladar, e tanto mais interessantes quanto é certo tratar-se dum degenerado quase analfabeto, que deve as suas únicas luzes á educação penitenciaria :


«Vem vento, levanta a folha.
Na sepultura vai cair;
Bem alto é céu mas ninguém
Lá pode subir.»

«Dizem que o céu é baixinho
Ninguém lá pode chegar:
Inda não houve dinheiro
Para o comprar.»
«Um dia subi ao freixo,
Quebrei um galho e cai:
É a minha condição. .
.Nunca mais alto subi.»

«Há gente que quer ser sabia
E traz o saber guardado;
Mas não houve quem soubesse
Como o homem foi gerado.»

«O sol nasce no nascente
E ao poente se vai pôr:
Entra logo num sacrário
Onde está nosso Senhor.»

Estes versos, assim tornados legíveis, são dum intenso sabor popular e traduzem conceitos líricos que muitos poetas cultos não desdenhariam. Há neles um largo instinto do ritmo. É bem a mesma poesia que, entre falantes, criminosos-natos e coloris de cachimbo, arranhando a bânzara nas velhas baiucas, produziu um dia esse eterno e precioso Fado!
VIIF. O. e V., .54 anos. Formado em matemática pela Universidade de Coimbra (?). Entrada para Rilhafoles em 1872 e saída, no mesmo estado, em 1894. A papeleta nada refere sobre antecedentes hereditários e sobre estigmatisação somática. Diagnostico: paranóia primitiva com delírio de grandezas. — Delírio por assim dizer nobiliárquico. Deixou-nos, numa preciosa documentação pictural e escrita,a história do seu sistema delirante. O que mais interessante nos parece, nessa documentação, é a feição quase exclusivamente heráldica das ideias do doente. Desfia a sua história genealógica que remonta á dinastia dos Faraós e illumina-a pela figuração heráldica. No topo das folhas em que escreve, pinta, á feição de timbre, três flores de liz em campo azul. Ele mesmo descreve esse timbre: «... a esfera o Universo corada de azul celeste com as três flores de liz de oiro chama- se França real e imperial. . . O coxim da coroa é rematado de flores de  liz de ouro de menor altura do que um terço do raio correspondendo as competentes quatro em cada uma das generatrizes quer ortogonais quer obliquas...» A geometria posta, como se vê, ao serviço da heráldica. Perguntado sobre os motivos que o levavam a usar as armas de França, responde: «... uso-as em virtude de eu representar os direitos e Acções de meu pai Luiz XVII, que os testou todos a meu favor. . .» E mais adiante : " Outras representações ainda possuo de François de Valoys, duque de Alençon, que é a equivalência primeira e principal das armas de França...» Quando a documentação histórica falece e para que não haja duvidas sobre a autenticidade dos seus direitos ao uso de tal ou tal símbolo heráldico, recorre á resolução pelo calculo da forma geométrica dos escudos. Mas o que sobre tudo nos interessa, neste paranóico, é a exteriorização pictural do seu sistema. Os seus manuscritos estão semeados de figurações incompreensíveis e extravagantes, sereias de seios inverosímeis e caudas escamosas, brasões d'arnias atropelando toda a heráldica, divisas em latim: «Nec Pluribus Impar», «Ascendo, non Descendo»,— esferas consteladas, coroas reais fechadas com figuras alegóricas no topo das cruzes, «os santos patriarcas segurando com uma das mãos o escudo brasonado e com a outra a lira d'ouro. . .», monstros heráldicos de escamas verdes, uma multidão, enfim, de expressões nobiliárquicas figuradas, que são, por assim dizer, a materialização do sistema delirante do nosso paranóico. A tendência para o símbolo, já de si característica da paranóia, sobrepõe-se, neste curiosíssimo caso, a feição heráldica e por conseguinte aqui-símbolica do conteúdo das ideias delirantes. O doente era um megalómano grave, um megalómano erudito. As suas ideias de grandeza limilavam-se a locubraçóes genealógicas e á feitura de símbolos nobiliárquicos. No hospital, durante o seu internato, não tomava atitudes , nem fazia exibições decorativas : não apresentava a espectaculosidade de tantos outros delirantes ambiciosos (caso Barreirinha).  Ás vezes, levado pela sua tendência heráldica a descrever pedras de armas que existiriam sobre os portais de moradas suas, mete-se pela arquitectura. Falando de certo palácio da rua do Bispo (Funchal) classifica-o de «ordem lusa, caracterizada pelos losangos (sic) que ornam as bases das colunas.» Descrevendo a casa de Colombo e figurando-a, diz: «... mostra a figura que o edifício é de ordem coríntía caracterizada pelos seus distintivos, as folhas de acanto...» Tudo aproveita e em tudo encontra relações com o seu sistema delirante (carácter egocêntrico): uma inscrição, um portal, um documento lido algures num tombo. De resto, coisa relativamente rara, não se defendia. «E um espirito muito simples, escreve o prof. Bombarda numa nota da papeleta, que comunica ao primeiro que apareça a larga soma das suas ideias grandiosas.» A nota mais repetida em todos os documentos é a da pretensão á coroa de França. Julga-se filho de Luiz XVII. A certa altura abre um parêntesis no seu delírio para fazer a história das suas dentições.
Uma pagina do livro de heráldicas do paranóico F. O. de V. (Obs VII)
VIII. — L. M. e L., 20 anos. índice cefálico 78,9 (14,2-18,0). Crânio assímétrico. Orelhas em ansa. Delírio polimorfo de degenerado: grande poeta, grande músico, etc. Saudações lembrando o tique de Salaam. Pai alcoólico e suicida. Mãe histérica. Condenação por furto.
Diagnostico : paranóia primitiva com delírio de grandezas. — O doente deixou um manuscrito deveras curioso que, ao menos pelo lado gráfico, muito interessa ao psiquiatra. Cada folha abre ao topo por dois ou três versos, de natureza evidentemente lírica, mas incompletos, incoerentes, sem métrica e ás vezes ilegíveis:
«Rasga o peito pomba celeste,
Pomba bella no brilho. . .
Pomba que foste bella,
Soffre »
As aliteraçóes e as insistências são vulgares. Daí até aos baixos da página o doente compraz-se na repetição das mesmas palavras em vários tipos de letra,
floreando e iluminando as capitães, e metendo de permeio figurações simbólicas. Estas viciações são absolutamente características do documento escrito de todo o paranóico.
IX. — L. d'A. P., 34 anos. Microcefalia. Avó materna: acidentes nervosos. Uma colateral beata. O doente, segundo informações da mãe, fugia de casa e passava a vida nas igrejas.
Diagnóstico: idiotismo. — Grandes desenhos lineares, formados de elementos ordenados simetricamente, dando a impressão de mosaico, e que o doente executa só pelo prazer de colorir. Algumas dessas estranhas figurações geométricas, séries de rectângulos, losangos e trapézios diversamente dispostos, são, segundo o dizer do nosso microcéfalo, salões, praias e prédios. Forte cromofília.
X. — A. P. D., 55 anos. Índice cefálico 76,7 (14,3-18,7). Orelhas mal modeladas, sobre tudo a direita, e assimétricas (tipo Blainville). Herança do lado materno. Ideias de perseguição sistematizadas. Interpretação falsa de factos mesmo insignificantes. Ilusões várias. Reserva. 
 Diagnóstico: paranóia primitiva com delirio de perseguições. —Exteriorisação do sistema pelo documento escrito. Gráfica vertiginosa. Figurações simbólicas substituindo ás vezes as palavras. Abuso de itálicos, de parágrafos. Mudança constante do tipo de letra; locuções repetidas; impropriedade de pontuação; disfrásia. Interpretação egocêntrica de todos os factos. Vocábulos ingleses, franceses, portugueses, alemães: confusão
sintaxica. (Veja-se o autografo da pag. seguinte).

XI. — A. P. C, 54 annos. índice cefálico 78,0 (14,4-18,3). Face assimétrica. Abóbada palatina funda. Tremores fibrillares ataxiformes da língua, lábios, massetéres. Tremulação das mãos. Complexidade de formas delirantes sucedendo-se por largo tempo sem qualquer fio de ligação lógica. Delírio esboçado desde a infância, desenvolvendo-se na puberdade. Alucinações visuais referentes a essa época: visão dum anjo de rosto nobre e formoso, cabelos longos e esparsos, vestido talar cor de rosa aparecendo por detrás «duma amendoeira florida e jocunda, da coma ao tronco». Mais tarde (1881) tinha o doente 38 anos, irrompe a paranóia persecutória. Três anos depois, eclosão dum delírio inventorio: supõe ter descoberto a direcção dos balões; espalha pelas taceiras dos livreiros projectos e gráfícos. Finalmente (1891) aparecem ideias eróticas. O «anjo da amendoeira» resurge, mas desta vez o doente reconhece-o: é a Rainha. O delírio fixa-se, sistematiza-se. Escreve á Rainha; ameaça o Rei. Apreensão de cartas; prisão; reclusão hospitalar. O doente defende-se, dissimula, nega: mais depressa, uma carta sequestrada dá a chave do delírio. Diagnóstico : paranóia originária com delírio ambicioso de colorido erótico; episodicamente, ideias de perseguição e ideias inventorias.—O presente caso deu margem a um belo estudo do professor Bombarda sobre essa forma degenerativa há anos fixada por Sander. É pelos traslados desse excelente estudo que eu conheço dois folhetos feitos publicar pelo doente. O primeiro intitula-se : «O meu pacto com o diabo ou a primeira metade» ; o segundo: «O meu anjo redemptor ou a outra metade» Parecem suceder-se nos folhetos, nota o meu ilustre mestre, as duas formas de perseguição e de grandeza do delírio crónico de gerente, a primeira correspondendo ao período que vai desde 1880 a 90 e a segunda ao período que decorre desde 1890 até hoje (1900). A notar, no primeiro folheto, a Índole especial e por assim dizer mediéva do delírio persecutório: ideias demoníacas, pactos com o diabo, etc. O segundo folheto, esse, é por assim dizer a integração da figura da Rainha no símbolo adolescente do "anjo da amendoeira». Estes documentos são realmente muito interessantes. Grande poder imaginativo. Qualidades literárias dignas de nota. Tendências simbólicas. Erro egocêntrico. Certos efeitos poéticos, certos descritivos, são talvez a expressão de ilusões sensoriais. Palavras sublinhadas, justamente as que o doente mais valoriza: «imendoeira», «poço», «fórmulas», «golgotha »... O colorido erótico das suas ideias ambiciosas está expresso num grande número de cartas, que constituem uma documentação excepcionalmente rica. As últimas, muito posteriores ao já referido estudo do prof. Bombarda, espiritualizam, bisantinisam ainda mais as suas relações com a R.: tuteando- a ainda, trata-a agora de «irmã» Refunde a sua memória sobre o balão dirigível e envía-lha (Janeiro, 1900) acompanhada duma carta onde se lêem os seguintes períodos: "Desta preciosíssima jóia, que por sua valia e beleza constitui a maior maravilha do mundo, faço-te eu, de joelhos, propriedade absoluta e  perpétua, a ti, minha excelsa soberana..." E mais adiante: «Eis, minha santa e querida irmã, o mimo que, por minhas mãos, Deus te oferece... .» Por ultimo, empraza a R. para Paris e despede-se «até á gloria». Nesta carta dá como «restaurado o balão, causa inocente de um grande martírio e da mais formidável revolução que se tem feito na terra...» As ideias eróticas, inventórias e de perseguição, fixam-se, integram-se e sistematizam-se num delírio  único, completando-se e explicando-se reciprocamente.
XII. — A. P. de L., 21 anos. Escriturário de fazenda, índice cefálico 76,2 (14,4-18,9). Orelha direita mal modelada: assimetria. Rebordos orbitários salientes. Crânio alongado e acuminado no extremo occipital. Estrabismo divergente. Estreitamento do campo visual. Meia anestesia nos últimos segmentos do membro inferior. Vestígios de limfatismo. Perturbações vaso-motrizes tendo a sua principal sede na extremidade cefálica : fácil congestionamento da face. Preso por subtracção fraudulenta. Um passado de vagabundagem, de excessos sexuais, de ociosidade. Ataques epilepioides. É discursador, balofo, egoísta, d'uma ..infatuação meio imbecil». 
Diagnostico: loucura moral. Este caso deu ao ilustre prof Bombarda um dos seus estudos medico-legais. — Encontro na documentação do doente um manuscrito de "Pensamentos", forgicado numa linguagem
de colorido arqui-rétorico, pastosa, empolada, prenhe de velhas alegorias "...a bandeira da honra cahindo na lama dos vícios", "O templo da inocência", " . . .em letras doiro os segredos de Orpheu", etc. De repente descamba na escurrilidade, para de novo se erguer em lastimas e imprecações contra «a mulher vaidosa que o levou ás trevas da desonra...' Palavras de penitencia, sentimentalidades declamatórias, versos de permeio, e de vez em quando um certo ar dogmático: "Sabei ! nem a mulher nem o ouro constituem a felicidade do coração humano". De espaço a espaço, como nos escritos do paranóico, figurações simbólicas substituindo as palavras. Mudança vulgar do tipo de letra. Abuso de capítulos.

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