Crítica de Ernesto de Sousa a uma actuação do Grupo de Accion Instrumental de Buenos Aires que actuou no Instituto Alemão de Lisboa ("o alemão Curt Meyer-Clason, dirigiu o Instituto entre 1969 e 1976, uma ilha de liberdade e cultura durante a ditadura"), o texto fala sobre Max Ernst, DADA e a falta de interesse do espectador poeta/pintor a este "género de actuações culturais"
Por favor fechem todas as portas!
A bailarina avançou para o proscénio,
ergueu lentamente o braço e repetidamente pediu: “Por favor,
fechem todas as portas!”
As portas não se fecharam logo.
Alguns retardatários ainda se escapavam para o escuro da sala do
Instituto Alemão, onde o Grupo de Accion Instrumental, de Buenos
Aires, começava a representação de “ Le Femme 100 Têtes”,
after Max Ernst, numa
sucessão de estruturas musicais, exercícios de acção, dança,
projecções de colagens e de outras, onde emerge o “fantasma dos
pássaros”, Max Ernst escrevera, referindo-se a si próprio:
“...
No seu espírito enraizara-se uma perigosa confusão entre pássaros
e seres humanos. Isto viria, mais tarde, a exprimir-se através dos
seus desenhos e quadros... De resto, Max deveria um dia
identificar~se a “Loplop, l'oiseaux suprême”. Esse fantasma
conservou-se inseparável de outro, chamado Peturbation, ma soeur, le
femme 100 têtes”
Por
esta breve citação se poderá avaliar do carácter angustiado e
angustiante desta obra de Max, o que aliás caracterizaria em geral
toda a sua produção, quer no periodo DADA quer durante a época
surrealista até cerca de 1942. Só por esta altura, já com cerca de
50 anos, Max venceriaas suas obsessões e, como diz um dos seus
comentadores”passaria da angústia ao encantamento”. Mas as
obsessões de Max Ernst não o impediram de tecer uma das obras mais
originais e poéticas do seu tempo, realizada através de minuciosas
e originais investigações plásticas e descobertas técnicas. O
trabalho do Grupo de Accion Instrumental baseado numa partitura de
George Antheil, é brilhante e irregular. Porventura demasiado
brilhante..., por vezes parecendo ignorar que o humor surrealista (e
sobretudo neste caso particular) é um humor negro. As angustias de
Max Ernst desvanecem-se numa graça, e todo o caso, controlada e por
vezes acutilante. Apesar das reservas que se possam fazera esta
actuação, ela tem o grande mérito de relembrar uma obra ímpar e
altamente importante para as preocupações estéticas e outras do
nosso tempo – barroco e neodada.
E é
a importância deste renascimento que nos moveu a outro tipo de
preocupações. A quem pode interessar este género de acções
culturais? Naturalmente em primeiro lugar aos artistas plásticos,
aos poetas, aos músicos... E a todos, enfim, para quem a cultura não
seja mero passatempo ou objecto de consumo reificado e empobrecedor.
Ora, quanto aos primeiros, pintores, poetas, não estava lá nenhum
na repleta sala do instituto alemão. Desinteresse, desconhecimento.
Repete-se o que já acontecera o ano passado – e noutro lugar
assinalei – quando, por iniciativa também do Instituto Alemão e
das Juventudes Musicais, veio até nós pela segunda vez o Collegium
Vocale de Colónia, e entre outras coisas executou o célebre poema
simultâneo DADA “L'Admiral Cherche Une Maison À Louer”, de
Richard Huelsenbeck, Marcel Janco e Tristan Tzara. Este poema fora
executado em 1916 numa das célebres sessões do Cabaret Voltaire,
assinalando assim o nascimento em Zurique do Movimento DADA, que
tanta importância viria a ter e volta a estar hoje nas preocupações
modernas, nomeadamente no que respeita às artes plásticas.
Por
favor, fechem todas as portas! Fechem todas as portas... sobretudo
aos vendilhões do templo, aos artistas plásticos apenas preocupados
com as cotações das respectivas obras, aos críticos ansiosos de
promoção, aos especialistas estreitamente fechados nas suas
herméticas profissões... e que apenas repetem para sossego das
respectivas inconsciências: não se passa nada... Fechem-lhes todas
as portas! A juventude que na sua maioria enchia a sala do Instituto
Alemão não tem nada a esperar de tais intelectuais, nada a aprender
com eles... e se não quiser sossobrar tamb´me nesta apatia geral,
fechadas todas as portas, terá de cuidar dos seus próprios valores.
É fechar todas as portas a partir do zero.
Referências do artigo:
Grupo de Accion Instrumental - grupo argentino lendario dos anos 60/70, "La idea era llevar el desvío de lo musical y lo instrumental a esa tierra de nadie que es el teatro. El descubrimiento era que el instrumento y el actor son dos animales escénicos, pero cuando salen a escena no comparten el mismo destino. El actor entra para ser otro, para representar, pero el intérprete no entra para eso, sino para otra cosa. Si hay algo teatral, que lo hay, el intérprete es inocente de los duendes escénicos que destila su acción." Entrevista a uma das participantes do grupo
Loplop et la Belle Jardinière - Max Ernst, 1929
George
Antheil compositor do 'Ballet Mechanique', banda sonora do filme de Fernand Leger de 1924 e inventou com Hedy Lamarr um sistema de 'espectro de difusão em frequência variável' que originou as comunicações wi-fi de hoje em dia.
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