quarta-feira, outubro 16, 2013

O Rei do Universo, Manoel Calçada & Bento das Fornadas; Figuras Populares de Vila do Conde

    Este livro Galeria de Figuras Populares é uma compilação de histórias reais sobre várias personagens que viveram em Vila do Conde e arredores. O livro parece artesanal feito de fotocópias retirado da revista do princípio do séc. xx, Illustraçao Villacondense. Escolhi três histórias das figuras populares que considerei mais interessantes.

O Rei do Universo
Quem não conheceu um pobre velho, que viveu muitos anos em Vila do Conde, intitulando-se e sendo conhecido pelo nome do Rei do Universo?
    Quem não o conheceu, julgará inverosímel o ligeiro esboço biographico do que damos apenas alguns traços.
    Não sabemos bem a sua naturalidade nem estirpe, nem temos dados sobre a sua hereditariedade. Já era velho, quando o conhecemos, pois teria perto de setenta annos.
    Vivia n'uma pobre casa, situada na antiga rua das Hortas, e mais tarde mudou para outra, na Rua de Santo Amaro.
    Era um velho d'estatura regular, magro, usava barba toda, branca, mas muito bem tratada. Era pobre mas limpo.
     Tinha até um fardamento antigo, muito bem conservado, composto de casaca azul, com botões dourados, calça  e collete branco, servindo-se d'elle nos dias festivos. Possuia uma pequena bandeira, ou melhor estandarte, bordado por elle a missanga e contas de várias côres, onde se via estampada uma espécie de cruz de Malta, e usava uma banda confeccionada com as mesmas contas.
    Na maior parte das procissões que se effectuavam, em Vila do Conde, elle lá se apresentava no começo, junto da música, com o seu fardamento e banda a tiracolo, levando hasteado o referido estandarte n'uma vara de metal branco, muito bem polido.
    Ia muito bem posto e senhor do seu papel. Era-lhe isso permitido, por ser um pobre velho inofensivo, apenas com a mania de ser o Rei do Universo.
    Segundo informações, que colhemos, soubemos, que elle veio para Villa do Conde das Terras de Santa Cruz, onde já tinha a mesma mania, figurando em muitas festas, que ali fizeram. Quando chegou a esta villa, ainda tinha algum peculiosisnho, mas em pouco tempo tornou-se pobre.
    O Rei do Universo contou-nos com uma certa convicção ter ido já para o céu. Descreveu-nos este, e entre muitas coisas, disse-nos que as paredes eram de pão de ló, e que lá mal um individuo pensasse em qualquer alimento, este logo lhe cahia na bocca.
    Perguntamos-lhe; se tinha ido ao inferno? Respondeu-nos, que não, tentou um dia lá ir, mas , logo ao entrar da porta, sentiu tanto calor, que o obrigou a retirar-se.
    Disse-nos mais, ter passado pelo purgatorio, mas, que pouco se desmoronou, porque estava ancioso por ver o céu.
    Era um pobre velho, maniaco, mas bom homem, e tinha habilidade.
    Em Horticultura e pyrothecnia mostrou elle os seus conhecimentos; n'algumas casas, d'esta villa, a troco d'alimentação, elle tratava muito bem das hortas e quintaes.
    Por vezes n'algumas festividades, realizadas n'esta villa, exhibiu alguns bonecos de fogo, organizados por elle, não produzindo o effeito desejado por falta de material preciso, pois não o podia obter por não ter recursos. Muitas vezes não recebia coisa alguma pelo seu trabalho, e era apupado pelo rapazio, que chamava ao producto de muita canceira, -o fogo do rei do universo- ;vivia, nos ultimos tempos, muito pobremente, valendo-lhe para matar a fome a caridade d'algumas pessoas.
    Elle não mendigava, soffria...
    Era um martyr da sua realeza...
    Morreu, já ha bastante annos, o Rei do Universo.
    Não sabemos se levou para a cova o seu fardamento dos dias de festa, e o seu adorado estandarte.
    Este era pequeno para envolver o seu corpo inanimado.
    Era formado de pequenas contas, talvez jjulgadas pedras preciosas pelo pobre velho, a quem a ideia de realeza offuscou a razão.
    Em campa rasa jaz no cemiterio de Villa do Conde.
    Não tem mausoléu, mas tem perto parte da famosa arcaria, que constituia o grandioso aqueducto do convento de Santa Clara, monumento que elle tantas vezes comtemplou, e que terá de desfazer em ruínas pela acção do tempo e incuria dos homens.

Manoel Calçada

 EX DIGITO GIGANS. Pelo dedo se conhece o gigante. Se anatomicamente é mais ou menos verdadeiro este adagio latino, é certo, que nem sempre estatura physica corresponde à moral e intellectual, nem a beleza condiz com o genio e aptidão.
    Conhecemos, em todos os ramos Sciencias e das Artes, verdadeiros genios e homens notaveis, a quem a natureza não foi prodiga em formosura, nem os coadjuvou, e antes foi avara, sobrecarregando-os com defeitos e disformidades physicas.
    Manoel Calçada, natural de Villa do Conde, fallecido há poucos annos, foi um d'esses exemplares, a quem a natureza não favoreceu, e antes o flagelou com uma disformidade físca.
    Era corcunda. Em tenra idade, não bastando já a sua compleição physica, soffreu uma contusão, do que lhe resultou a disformidade da columna vetebral.
    Esse defeito junto à sua physionomia particular e aos effeitos do vinho, pois era alcoólico, muito concorreu para a sua triste popularidade.
    Tinha, contudo, uma alma d'artista, uma vocação natural, e um acrysolado amôr pela esculptura.
    Manoel Calçada, não era um genio, uma intelligencia, mas um artista amador, cujos trabalhos, executados às escondidas, sem instrumentos aperfeiçoados, revelam muita perfeição, e uma verdadeira competencia artística.
    Muitas pessoas de Villa do Conde e do concelho, conservam em suas casas muitas esculpturas por Manoel Calçada, muito perfeitas e acabadas, podendo rivalizar com as melhores, produzidas por artistas profissionaes.
    Trabalhava muito, e os seus trabalhos em talha eram muito apreciados.
    Muitas vezes atribuiam-lhe tarefas durante o dia par o privar de entregar aos seus compromissos como esculptor, mas elle, todos os momentos, que podia dispensar, aproveitava-os para lançar mão d'um tosco pedaço de madeira para o converter n'uma perfeita esculptura, trabalhando de noite, às escondidas, e com instrumentos imperfeitos.
    Era um artista apreciavel.
    Apesar da sua deformada organização era valente, tinha nervos e pulso.
    Possuia tambem gosto pela musica, e já que não sabia tocar instrumento algum, pedia muitas vezes ao Francisco Carioca, verdadeiro amador de musica, como já fizemos ver, para este desempenhar no harmonio algumas peças. Mu..musica di..direita...
    Muitas vezes, quando travava questões com os amigos, e estava um pouco influenciado pelo alcool, com um timbre de voz e gaguez especiais dizia:
    «O'..olha se..te..vo..to os ar..arpeos es..esga..gano-te»
    Outras vezes alguns amigos o beneficiavam e elogiavam dizia:
    O'...olha, quê..què..queres que..que te fa..faça um..um Christo ou um .. Santo Antonio?»
    E promettia, e fazia-o, porque, dissemos, apesar dos seus defeitos physicos, e vicios, Manoel Calçada era um perfeito artista-esculptor.
    Era uma verdadeira vocação artística, e contudo nunca teve recompensa digna, nem foi aproveitada como devia ser.
    Em Villa do Conde tem havido e ha ainda hoje muitos artistas, cujos trabalhos honrariam os mais nomeados profissionaes, mas vivem obscuros, n'este pequeno meio, sem que as suas obras sejam valorizadas e apreciadas como deviam ser, e sem que possam conseguir todo o material para a sua concepção.
    Em todo o caso quem percorrer esta villa e concelho poderá fazer justiça aos artistas villacondenses e do concelho, vendo e observando as suas obras.

                                                          O Bento das Fornadas
    Já morreu ha muitos annos, o 'Bento das Fornadas, e , embora ate fosse natural de Villa do Conde, foi aqui muito conhecido, porque todos os dias aparecia n'esta villa.
    O Bento das Fornadas, era natural da Galiza, e veio para a Póvoa de Varzim, occupando-se no mister de trazer sacos de Milho(fornadas) para ser moido nas azenhas de Villa do Conde, Azurara, ...
    Era um pobre velho, alquebrado pela idade, expunha-se aos rigores do tempo para cumprir fielmente a sua missão.
    Andava vestido com quatro ou cinco casacos velhos, e punha na cabeça seis ou sete chapéus uzados. Perguntando por que razão assim procedia, respondia: É por causa dos garôtos, que todos os dias pegam commigo, e me atiram pedras, e assim estas, não me me fazem tanto damno.
    Era um pobre velho.
    Quando os dias eram muito tempestuosos pernoitava nas azenhas, valendo-lhe a caridade dos moleiros, que lhe davam de comer e dormir.
    N'uma ocasião, vespera de Natal, veio o desgraçado a Villa do Conde trazer uma fornada, e aconteceu que o dia se tornou tempestuoso. Todo molhado trazido, de frio, o Bento das Fornadas correu d'esta villa, para a Póvo de varzim, perseguido pelos garotos, quando lhe apareceu uma pessoa, que condoendo-se da triste sorte do pobre velhinho, lhe disse para elle ceiar e ficar em sua casa n'aquella noite.
    A principio o pobre homem exitou por não conhecer quem lhe fazia o convite, mas, como elle insistia, e já era tarde, e chovia muito, aceitou.
    Passado pouco tempo, foi-lhe servida uma boa ceia.
    O velho logo que acabou de ceiar, exclamou:
«Louvado seja Deus, não me lembro de comer tão bem!»
«Santo Natal! .. Deus o abençoe esta família, e a alma bemfazeja que para aqui me trouxe...»
     O infeliz chorava d'alegria, por saber que n'aquella noite, pobres e ricos, todos ceiam em família, e , elle longe dos seus qual encarcerado ou exilado, teria de recolher ao seu miseravel quarto, em que vivia, senão fosse o anjo de caridade, que o levou a gosar delicias, que lhe fizeram esquecer por momentos, as agruras da sua vida, e o isolamento da família.
    Santo Natal!! repetia elle.
«Deus nasceu n'umas palhinhas, para nos dar o exemplo de humildade, e suavizar a pobreza, mas assim como a elle uma estrela servia de guia, para ser adorado pelos reis, a mim uma estrella me guiou para esta casa, onde estou sendo adorado por esta família. Deus a abençoe !..»
    Depois de rezar deitou-se, e dormiu toda a noite. Quando a luz do dia principiava a iluminar-lhe o quarto, o pobre homem acordou e parecia-lhe tudo um sonho!..
    Esfregou bem os olhos, e viu que era uma realidade.
    Levantou-se, e não sabia como agradecer tão grande obra de caridade.
    Almoçou, foi ouvir missa, e quem o visse na rua, não diria, que era Bento das Fornadas, pois ia limpo, e não levava senão um chapéu na cabeça, e um casaco!.. Até se lembrou que os garotos não mais lhe atiravam pedras!
    Jantou bem, e à tarde foi para a Póvoa, depois de beijar a mão ao seu bemfeitor, carregado com a roupa velha.
    Muito bem comportado e morigerado, era considerado, n'aquella villa como um santo. Quando morreu, muitas pessoas de todas as classes cocorreram para o seu enterro, e, segundo nos consta, foi depositado o seu cadáver, n'um jazigo de familia, d'umas das pessoas d'aquella villa.
    Durante muito tempo uma verdadeira peregrinação se estabeleceu para o cemitério a  visitar o jazigo de Bentos das Fornadas, pois como disse, era considerado santo pelas classes baixas d'aquella villa.


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