O pesadelo urbano na moderna FC
Mais do que em qualquer outro género literário, a conceptualização da narrativa de Ficção Científica apela irremediavelmente a uma rica imaginação visual. Enquanto no romance realista – texto potenciométrico, como preferem alguns intelectuais mais highbrow – a história pode assentar tão só no fluxo narrativo já que a contextualização física é um dado adquirido (com a ressalvada excepção do romance histórico, que exige uma localização mais específica, mas que está ainda ao alcance do conhecimento quotidiano, bastando com uma rápida consulta aos manuais de história) a narrativa científico-ficcional impõe a supremacia da imaginação visual e criativa.
O realismo próprio da história de FC encontra-se na falsificação visual do meio em que a acção se desenvolve – alargando-se esse meio ao próprio crescimento do conhecimento científico que, a maior parte das vezes , reveste uma quebra conceptual extraordinária face ao senso-comum.
A FC para além de texto é também imagem. Seja a imagem impressa, seja a imagem invocada pela descrição narrativa, pelo hábil morphing da nossa realidade, na realidade do nosso futuro.
Todos começamos a gostar de FC através das suas expressões visuais, seja a BD, o cinema ou a televisão. E hoje, todos nós trememos perante o ameaçado cenário de que a vertente visual da FC irá aniquilar a sua vertente mais importante, que é ainda a escrita.
Quando Star Wars (1977) explodiu nos ecrãs de todo o mundo, desenhava-se o início de uma nova era na FC – ainda mais importante do que aquele que fora esboçado pela obra prima de Clarke e Kubrik – pois a partir daí a FC cinematográfica libertava-se dos shoestring budgets dos anos 50, da categoria Bem que sempre estivera até 2001 – A Space Odissey (1968) e passava a ser comercialmente rentável.
Qual a razão de tão revolucionário sucesso para uma obra que dificilmente aguenta o confronto com o filme de kubrik?
A resposta simples: efeitos visuais! Star Wars concretizou de forma deliciosa para o olhar de toda a imagética da FC com que todos tínhamos sonhado desde que pela primeira vez ouvimos falar de naves espaciais, pistolas laser e demais parafernália espacial.
Toda a “inocente” poesia das pulps americanas estava ali plasmada naquele épico canibalismo de mitos populares modernos: os combates no espaço, os duelos de espada, a abordagem de navios, o bombardeio entre estreitos desfiladeiros, os saloons, o édipo, a Força, o aprendiz e o mestre e mais recentemente até o nascimento de uma mãe virgem (Episode 1: The Phantom Menace, 1999), todos os ingredientes das habituais histórias onde o Bem triunfa sobre o Mal, desde Ford a Kurosawa, estavam ali. Mais importante ainda, estavam ali de uma forma visualmente inovadora e visualmente credível.
Nunca antes uma filme de FC conseguira apresentar numa só narrativa os quatros principais temas da imagética da FC. Os BEM’s, a paisagem alienígena, o design de nave espaciais e o design das cidades!
Aquilo que até agora só se encontrava na literatura, passa a ser possível ao nível do celulóide e assim, também ao nível do cortex visual.
Não importa que os desertos de Tatooine sejam os mesmos em que Lawrence comandava o seu exército árabe, ou que Mos Eisley se assemelhe a Casablanca com a sua versão muito especial do Rick’s Café Americain, ou mesmo a qualquer cidade de qualquer Western Spaghetti; nem sequer interessa que a Death Star ( e mais tarde Coruscant) não sejam mais que a Trantor de Asimov; o que interessa é que elas estavam ali, reais aos nossos olhos, pela primeira vez.
Já não era só uma prancha colorida por F.R.Paul na capa de uma Air Wonder Stories.
Nem eram uma Nova York disfarçada de Metropolis (1926). Eram reais... existiam com gentes nas suas ruas. Nunca uma cidade portuária apresentou tanta variedade étnica como Mos Eisley, autêntico caravancerai no deserto de Tantooine (Tunísia).
Perante isto não há argumentos racionais que destruam a ilusão que Lucas construiu. Que importa que as naves não possam rugir no espaço, que importa que o design dos T.I.E. fighters não seja funcional, que importa que a força não possa mover montanhas? Algures nas pradarias mágicas de Tinsel Town, existe uma Mos Eisley, existe uma Coruscant, uma Trantor onde podemos procurar refúgio da realidade como uma velha barcaça nos empurrões da tempestade.
Mas há um outro aspecto onde a imagética da FC se impõe à realidade, não já como forma de escapismo, mas como arrogante alarme de porvir: na sua esmagadora visão do futuro urbano!
Existe uma indesmentível relação de amor-ódio entre a FC e a Cidade, relação essa que Frederik pohl sumariza perfeitamente quando escreve que “i hate them because they are destructive of nature and man; i love them because they work” ( Posfácio a Future City, 1973).
Porque hoje a FC não pode permitir-se uma confortável falta de consciência ambiental. Não depois de Silent Spring (1962), não depois de Stand on Zanzibar (1968), não depois de Silent running (1971), de The Sheep Look Up (1972) ou de Make Room, Make Room (1966).
Silent Running (1972)de Douglas Trumbull
Sobretudo, não depois de Hiroshima ou Chernobyl. A FC já não pode perpetuar os excessos da Golden Age, já não pode transportar o estandarte progressista de Gernsback e Campbell.
Depois de 1945, a FC foi obrigada a perder o seu optimismo tecnológico. A aspiração de um futuro galáctico para a humanidade dissolveu-se no cogumelo atómico e, sob o clarão ofuscante da sua chama, terminou a sua Age of Wonder (Jack Williamson, “Recolections of Analog” in analog, January 2000)
O único futuro honesto que a FC nos pode revelar agora, é o futuro da catástrofe ecológica, de sobrepopulação, de desintegração do tecido urbano.
A FC é, porém e acima d tudo, um género urbano. A Golden Age foi construída laboriosamente por habitantes da cidade (urban city dwellers who were happy there, nas palavras de k. s. Robinson), para quem a cidade representa a suprema forma de organização do tecido social humano. O mesmo acontece com as “civilizações” alienígenas que surgem regularmente na FC, quer em forma de texto, quer em forma de filme: as mais avançadas são sempre as que vivem em monumentais cidades, mesmo que os Morlocks se encontrem muito melhor adaptados ao meio do que os Elohim.
Mas repetir este truísmo é ao mesmo tempo dizer muito e não significar nada. Porque a humanidade , tal como a conhecemos, é um género urbano. E os aborígenes, não têm uma literatura de FC.
Inevitavelmente, a descrença no futuro tecnológico professada pela moderna FC teria que se reflectir na própria concepção de Cidade, conforme representada pelos seus cultores.
Os delírios urbanísticos de Le Corbusier tinham, já no começo do século, deixado a sua marca indelével de perturbações psicológicas nos seus habitantes. Tal como a paisagem, também as pessoas eram feridas pelas aberrações monumentalistas das escolas de arquitectura de então.
Existe um elo indissociável entre o Homem e a Cidade. E até as obras mais antiurbanas da FC, como as pastorais de Simak, servem apenas para acentuar essa ligação: o contraste é desenhado com a vida das grandes metrópoles.
E estas, na sua perfeita mímica das crenças de cada época, são verdadeiros organismos, quase alienígenas, que se metamorfoseiam e crescem (e morrem!) em sinistra simbiose com o homo sapiens.
E as obras de FC estão cheias destes organismos, destas visionárias cidades.
Cidades que vão da amada New York de Asimov até à Smalltown USA de Bradbury A mesma que se desenha no Southern Cyclorama de Caldwell, ou nas obras de Steinbeck, dotada agora com um dark carnival que põe a nu a sua falsa pacatez, a sua mesquinhez moral, a frágil estrutura da sua aparente coesão.
Daí que a Cidade (utopia/distopia) é sempre um símbolo de humanidade: Metropolis é a crítica da cidade Marxista, tal como Santa Mira é crítica do McCartysmo e o LA de Blade Runner é o símbolo do fim.
É intuitiva a ligação entre a estrutura urbana e a personalidade humana. Como observa Greg Bear, habituamo-nos nos últimos 8 a 10.000 anos a pensar em termos de vida sedentária, em termos de vida cívica, em termos de urbanidade no tratamento com os nossos semelhantes.
Nesses aspectos, The Life and Times of Judge Roy Bean (1972), filme magnífico de John Huston, é um excelente exercício sobre a estreita relação entre a vida de uma cidade e a vida do homem que a construiu.
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Mas a FC não é alheia a este exercício de estilo. Já antes, em 1936, Things to Come de Cameron Menzies, nos mostrava a sua subterrânea Everytown de design Bauhaus, tão estéril e asséptica quanto adormecida estava a criatividade dos seus cidadãos.
Mas as mais belas cidades da FC não são as megalópoles como Trantor, Everytown ou Metropolis; são a Londres isolada pelos glaciares de Clarke, são as cidades em ruínas, devastadas, de Ballard. São trepadeiras, reclamadas pelas selvas de do Yucatan.
Nenhuma imagem nascida da FC conseguiu até hoje duplicar a sublime poesia daquele momento final do Planet of Apes (1968) em que encontramos a estátua da liberdade- as suas ruínas – na areia de uma praia silenciosa.
A não ser que consideremos a estranha simetria que se encontra entre esse instante e aquele do 2001: A Space Odissey – do mesmo ano – em que os nossos antepassados primatas encontraram o monólito negro por entre uma ensurdecedora trovoada de gritos e guinchos.
É o monólito negro um símbolo de início da civilização e da fuga à natureza que caracterizou a recente evolução do homo sapiens e é a Estátua da Liberdade o símbolo desse retorno ansiado, o retrocesso até um estado antropóide (a)civilizado como o dos macacos de Boule?
Encontrar-se-á nessas duas cenas o confluir, num único e idêntico momento, da eterna tensão entre o que somos e o que poderíamos ter sido? Entre nurture e nature? Ou mesmo entre ciência e preconceitos humanistas?
Seja qual for a resposta, é certo que os dois filmes marcam uma época de mudança terminal na história do século XX e da FC (as revoltas dos estudantes, a efémera Primavera de Praga, Woodstock, Stonewall e Altamont e a chegada de Apolo XI à Lua sucederam-se no espaço desses dois anos: 1968-1969).
Mas, mais do que isso, esse momento do 2001, marca a apoteose do imaginário dos anos 50, a apoteose do optimismo da Golden Age, da “tecnologia e da ficção cientifica” dessa época (Thomas M. Dish). “For with devastating clarity it showed that the physical grandeur of the Space Program can only be achieved at ruinous spiritual cost. Technology was equated with the curse of Caine.”(in The Ruinsof Earth, 1971).
Com o surgimento do monólito negro (alarme ou catalisador?), surgiu a humanidade, numa génese que Robert Ardrey não desdenharia, pois é através da descoberta/criação da arma que se descobre/cria o utensílio e, só assim, pode surgir a Cidade e, com ela, a civilização.
A civilização é filha da arma. Até que o ciclo se complete no silêncio dessa praia sobre a qual o sol estende a sombra das ruínas da Terra.
A cidade é ao mesmo tempo o planeta e a nave espacial. O gótico da nave Nostromo de Alien (1979) torna-se o mórbido da LA de Blade Runner (1982). Mas acima de tudo, planeta ou nave, todas as cidade de FC são apenas uma: New York (ou Londres, se se é um New Waver, e a New Wave de Moorcoock, Aldiss e Ballard foi um movimento essencialmente urbano, tal como o movimento Cyberpunk de meados dos anos 80).
Metropolis (1926), que nas palavras de Lang teria sido inspirado pela visão do Skyline nova-iorquino, é “the first futuristic science fiction epic” (Kim Newman). É também a primeira distopia cinematográfica.
Metropolis precisa de ser alimentada como um gigantesco Moloch. São as massas que a alimentam, canibalizadas para que a Urbe possa sobreviver.
Como em soylent Green (1973) que, ao ingénuo vegetarianismo de Harrison, contrapõe a fria realidade do necessário antropofagismo. Porque com a sobrepopulação, com a progressiva ocupação dos solos, com a crescente exaustão das terras aráveis, não haverá espaço para cultivar o suficiente para alimentar todas as bocas.
E, com a sobrepopulação, também a Cidade cresce, como uma excrescência cancerígena sobre a face do planeta. E, como os seus habitantes, também ela precisa de ser alimentada; os serviços precisam de funcionários, as estruturas precisam de manutenção, os transportes necessitam fluir com normalidade. A cidade desenvolve uma teia voraz.
O limite parece encontrar-se no conto de Clive Barker (The Midnight Meat Train, 1984) no qual uma composição do metropolitano todas as noites leva o carregamento de carne humana para os monstros que vivem no subsolo londinense (os crocodilos nos esgostosde New York, os “resmugões nos de L.A., os toilers no de Metrópolis).
É esta a verdadeira simbiose entre o Homem e a Cidade: para poder viver no cada vez mais insuportável emaranhado de ruas, no caos do tráfico, o homem tem de alimentar o monstro – primeiro com a sua carne, depois com a sua vida.
A cidade na FC é acima de tudo um símbolo do Homem.
Assim como no horror. Aí, meio privilegiado, encontra este símbolo a sua total potencialidade de expressão: a casa assombrada.
Mas também a pequena e pacata comunidade assolada pelos fantasmas saídos do nevoeiro (The Fog, 1979), pelas sombras de Elm Street onde os pesadelos caminham com passos rápidos, nas civilizações sinístras que se ocultam sob os gelos dos pólos.
É no Horror que se encontram as mais famosas cidades da literatura: Castle Rock, Derry, Arkham, kadath, Dunwich, ou Edgerton. Porque o Horror segue o caminho complementar da FC: enquanto esta parte do caos para encontrar a ordem, o Horror parte da ordem e mergulha no caos.
A Metropolis de Lang não é mais do que o espelho do monstro de “Frankenstein” (1818) de Marey Schelley, obra seminal para os dois géneros literários.
Ambos- monstro e metrópole- são construídos de retalhos e buscam uma identidade que os defina. Nenhum dos dois pertence à Humanidade. Ambos foram criados por ela, mas também ambos a escravizam e sobre elaabatem a sua vingança. Ambos são organismos alienígenas, pese embora a sua origem – mais do que terrestre – humana!
Em Logan’s Run (1976), Michael york e Jenny Argutter fogem de uma magnífica cidade repleta de cúpulas ( mais uma vez as velhas ilustrações de F.R. Paul ou as mais recentes de Paul Youll) para encontrarem apenas uma wagshinton em ruínas e coberta de mídio e trepadeiras ( como as ruínas de Ballard). É no entanto, nesta ultima que encontram a libertação do sistema opressivo sobre cuja égide tinham sempre vivido.
Numa época em que o terror se confunde com as piores previsões da especulação científica, onde o inimigo não tem rosto, onde os nossos alimentos se encontram envenenados e nos sentimos incapazes de sobreviver fora da cidade que nos escraviza, o que a FC nos ajuda a compreender é precisamente o intervalo que separa a Smalltown the Bradbury e Simak, do moderno Moloch urbano.
João Seixas
in Paradoxo nº3, 2000 (Fanzine de ficção científica e fantasia)
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1 comentário:
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