quinta-feira, outubro 24, 2019

Crítica de Ernesto de Sousa de 1974


Crítica de Ernesto de Sousa a uma actuação do Grupo de Accion Instrumental de Buenos Aires que actuou no Instituto Alemão de Lisboa ("o alemão Curt Meyer-Clason,  dirigiu o Instituto entre 1969 e 1976, uma ilha de liberdade e cultura durante a ditadura"), o texto fala sobre Max Ernst, DADA e a falta de interesse do espectador poeta/pintor a este "género de actuações culturais"
Por favor fechem todas as portas!
A bailarina avançou para o proscénio, ergueu lentamente o braço e repetidamente pediu: “Por favor, fechem todas as portas!”
As portas não se fecharam logo. Alguns retardatários ainda se escapavam para o escuro da sala do Instituto Alemão, onde o Grupo de Accion Instrumental, de Buenos Aires, começava a representação de “ Le Femme 100 Têtes”, after Max Ernst, numa sucessão de estruturas musicais, exercícios de acção, dança, projecções de colagens e de outras, onde emerge o “fantasma dos pássaros”, Max Ernst escrevera, referindo-se a si próprio:
“... No seu espírito enraizara-se uma perigosa confusão entre pássaros e seres humanos. Isto viria, mais tarde, a exprimir-se através dos seus desenhos e quadros... De resto, Max deveria um dia identificar~se a “Loplop, l'oiseaux suprême”. Esse fantasma conservou-se inseparável de outro, chamado Peturbation, ma soeur, le femme 100 têtes”
Por esta breve citação se poderá avaliar do carácter angustiado e angustiante desta obra de Max, o que aliás caracterizaria em geral toda a sua produção, quer no periodo DADA quer durante a época surrealista até cerca de 1942. Só por esta altura, já com cerca de 50 anos, Max venceriaas suas obsessões e, como diz um dos seus comentadores”passaria da angústia ao encantamento”. Mas as obsessões de Max Ernst não o impediram de tecer uma das obras mais originais e poéticas do seu tempo, realizada através de minuciosas e originais investigações plásticas e descobertas técnicas. O trabalho do Grupo de Accion Instrumental baseado numa partitura de George Antheil, é brilhante e irregular. Porventura demasiado brilhante..., por vezes parecendo ignorar que o humor surrealista (e sobretudo neste caso particular) é um humor negro. As angustias de Max Ernst desvanecem-se numa graça, e todo o caso, controlada e por vezes acutilante. Apesar das reservas que se possam fazera esta actuação, ela tem o grande mérito de relembrar uma obra ímpar e altamente importante para as preocupações estéticas e outras do nosso tempo – barroco e neodada.
E é a importância deste renascimento que nos moveu a outro tipo de preocupações. A quem pode interessar este género de acções culturais? Naturalmente em primeiro lugar aos artistas plásticos, aos poetas, aos músicos... E a todos, enfim, para quem a cultura não seja mero passatempo ou objecto de consumo reificado e empobrecedor. Ora, quanto aos primeiros, pintores, poetas, não estava lá nenhum na repleta sala do instituto alemão. Desinteresse, desconhecimento. Repete-se o que já acontecera o ano passado – e noutro lugar assinalei – quando, por iniciativa também do Instituto Alemão e das Juventudes Musicais, veio até nós pela segunda vez o Collegium Vocale de Colónia, e entre outras coisas executou o célebre poema simultâneo DADA “L'Admiral Cherche Une Maison À Louer”, de Richard Huelsenbeck, Marcel Janco e Tristan Tzara. Este poema fora executado em 1916 numa das célebres sessões do Cabaret Voltaire, assinalando assim o nascimento em Zurique do Movimento DADA, que tanta importância viria a ter e volta a estar hoje nas preocupações modernas, nomeadamente no que respeita às artes plásticas.
Por favor, fechem todas as portas! Fechem todas as portas... sobretudo aos vendilhões do templo, aos artistas plásticos apenas preocupados com as cotações das respectivas obras, aos críticos ansiosos de promoção, aos especialistas estreitamente fechados nas suas herméticas profissões... e que apenas repetem para sossego das respectivas inconsciências: não se passa nada... Fechem-lhes todas as portas! A juventude que na sua maioria enchia a sala do Instituto Alemão não tem nada a esperar de tais intelectuais, nada a aprender com eles... e se não quiser sossobrar tamb´me nesta apatia geral, fechadas todas as portas, terá de cuidar dos seus próprios valores. É fechar todas as portas a partir do zero.


Referências do artigo:
Grupo de Accion Instrumental - grupo argentino lendario dos anos 60/70,  "La idea era llevar el desvío de lo musical y lo instrumental a esa tierra de nadie que es el teatro. El descubrimiento era que el instrumento y el actor son dos animales escénicos, pero cuando salen a escena no comparten el mismo destino. El actor entra para ser otro, para representar, pero el intérprete no entra para eso, sino para otra cosa. Si hay algo teatral, que lo hay, el intérprete es inocente de los duendes escénicos que destila su acción." Entrevista a uma das participantes do grupo


Loplop et la Belle Jardinière - Max Ernst, 1929

George Antheil compositor do 'Ballet Mechanique', banda sonora do filme de Fernand Leger de 1924 e inventou com Hedy Lamarr um sistema de 'espectro de difusão em frequência variável' que originou as comunicações wi-fi de hoje em dia.

 



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